top of page
Foto do escritorSérgio Amaral

A Crise da Idade Média no século XIV e a associação com os Cavaleiros do Apocalipse.

A escassez de alimentos motivada por mudanças climáticas numa fase de constante aumento populacional trouxe dificuldades econômicas, fome e condições para pandemias, como a Peste Negra de 1348, motivou através da influência da Igreja Católica, a uma associação com a "cólera do Apocalipse".


Já ao final do século XIII a Europa estava em crise. A depressão experimentada resultava de um crescimento fomentado pela adoção de inovações técnicas. Lembremos: o arado representava uma ferramenta com ampla diferença nos resultados das colheitas da Europa. Mas o salto na produção de alimentos, cada vez maior e de melhor qualidade, exigiu um alargamento constante de zonas agricultáveis. Portanto, a contínua expansão de áreas de cultivo era a única forma viável de manter a economia funcionando bem.


A funcionalidade de cada grupo social acabou duramente abalada. Cabia aos servos produzir, aos cavaleiros defender dos males desta vida, e aos clérigos garantir a proteção contra as forças do além. Porém, durante as crises, os cavaleiros pouco puderam fazer. O mesmo pode ser dito dos clérigos. A produção esteve longe do esperado. O conjunto de problemas apresentados a seguir será fundamental para fraturar um modo de manter a economia. Ao mesmo tempo, estas crises abrem as portas para práticas comerciais inéditas e, juntamente com elas, para a chegada de novos personagens sociais.


Lavrar, cuidar da terra, garantir o pão. Eram estas as atribuições fundamentais dos servos. Elas garantiam aos cavaleiros a tranquilidade necessária para cumprir as suas: proteger os seus senhores e aliados em guerras, evitar os saques, vencer torneios, honrar suas famílias. Por fim, aos clérigos estava reservada a tarefa de proteger a sociedade no universo sobrenatural. Orar era a sua principal incumbência. Assim, orando, os clérigos asseguravam a proteção divina ao povo. A partir das crises ocorridas na Baixa Idade Média, esta sociedade de funções tripartidas entrou em declínio.


Pintura "O Triunfo da Morte" por Pieter Bruegel.


No século XIV a Europa diminuiu. Ainda assim, a população do continente continuou a crescer até cerca de 1310. Apenas com o advento de fomes violentas e generalizadas, resultando em uma desorganização das atividades agrárias, o crescimento populacional paralisou. Uma primeira coisa a ser observada é que o Velho Continente experimentou mudanças climáticas, aliadas a desastres naturais, conflitos armados frequentes e a uma consequente redução populacional. Neste mesmo período, dois outros problemas afligem os europeus: por um lado, havia a Guerra dos Cem Anos (1337-1453). Este conflito envolveu três importantes regiões econômicas: Inglaterra, França e Flandres; por outro, a traumática experiência da Peste Negra (1347-1350), trazendo a morte por um mal desconhecido. E o que era difícil, ficou pior graças aos problemas provocados pelas crises demográfica e monetária. A partir de tantos problemas, um novo panorama econômico findou estabelecido.


Os problemas climáticos (nevascas, chuvas torrenciais ou secas prolongadas) foram essenciais para abalar gravemente a produção agrícola europeia em fins dos quatrocentos. Porém, não bastasse a força da natureza, sempre difícil de ser controlada e prevista em suas ações, ainda é possível observar as contribuições humanas para a construção de uma crise talvez sem precedentes nos campos da Europa.


Entre os aspectos ligados a governos e comerciantes, estão as guerras constantes envolvendo regiões como França, Península Ibérica, Escócia, Irlanda, Itália, Alemanha, a zona do Báltico. Tudo isto provocou grandes destruições nos campos. Um dos resultados de tanta devastação foi a tendência de baixas no preço do trigo a partir de 1350. Claro, houve exceções (1361-1362 e 1374-1375, por exemplo). Porém, entre 1350 e 1450, as baixas no cereal chegam a 35% na Áustria, 63% na Inglaterra e 73% na Renânia.


O trigo era (na verdade, ainda é) um alimento fundamental na vida do europeu. Por conta disto, a crise agrária fomentou uma série de graves problemas. Como fios de um único novelo, as dificuldades apareceram: as más colheitas provocaram surtos de fomes. Tamanha penúria, incerteza e desespero levaram populações ao abate generalizado de animais domésticos. Fragilizados, subnutridos, homens e mulheres sucumbiram às epidemias.


O grande problema para a demografia em meados do século XIV foi a Peste Negra. Entre 1348 e 1350, o mundo experimentou uma pandemia (epidemia em grandes proporções) de uma doença que cruzou mares e montanhas, vinda da Ásia, atingindo a Europa impiedosamente. Era a Peste Negra. Mortífera na maior parte dos casos, a doença exerceu papel crucial no rumo da vida econômica do século XIV.


Pintura que representa a pandemia da Peste Negra no século XIV.


A Peste Negra foi um problema menor em regiões de baixa densidade populacional. Por isto mesmo a doença atingiu mais aos pobres que aos ricos, pois estes puderam fugir dos locais contaminados. Por se propagar mais facilmente em lugares com maior concentração de pessoas, a peste fez-se mais presente em núcleos urbanos do que nos campos. Cidades como Florença e Provença, por exemplo, enfrentaram grandes dificuldades com a doença. E como se desafiasse a força da Igreja, a enfermidade arrastou-se até mosteiros e abadias. As comunidades religiosas, repletas de membros, foram alvos fáceis da doença.


A história mostra que em momentos de crise aguda, de fome, pestes ou guerras, o medo do fim se torna mais latente e se manifesta de diversas maneiras. Elementos como a desesperança e a crença demasiada, a fuga e o apelo aos discursos religiosos dogmáticos que dão contornos ao problema, tornam o fim do mundo um momento negativo e aterrador.


Em 1967, o historiador medievalista francês Georges Duby lançou um pequeno, mas magistral livro, intitulado O ano mil. Nele, Duby mostra que, não só às vésperas do ano mil, mas em grande parte do medievo, o medo do fim do mundo e o discurso apocalíptico e milenarista faziam parte do cotidiano das pessoas, podendo ser intensificado por fatores ou momentos específicos. Duby, em outra obra sobre o mesmo tema, a Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos, lembra ainda que, ao final do ano mil, os homens e mulheres medievais estavam em uma “inquieta” e “permanente” espera pelo fim do mundo.


O imaginário medieval era habitado pela ideia de fim do mundo e, na leitura de Duby, este medo era elemento chave para manter e reproduzir os laços hierárquicos da sociedade feudal, sobretudo a ideia de uma sociedade tripartida entre os que rezavam, os que guerreavam e os que trabalhavam. O discurso milenarista se baseava na noção de que o Apocalipse mostrava que, depois de mil anos, desde a morte de Cristo, o Anticristo viria para atormentar o “mundo dos homens”. Duby explica: “todo o mundo acreditava nisso e aguardava o dia da cólera que provocaria, evidentemente, o tumulto e a destruição de todas as coisas visíveis”. Em outras palavras, o medo do fim do mundo era um dos pilares deste mundo.  


Se aos arredores do ano mil não se tem notícia de uma peste tão devastadora, nos anos 1300, parece que um dos cavaleiros do Apocalipse descritos na Bíblia descia na Terra e estava a preparar o começo do fim. A peste foi uma espécie de corporificação dos medos do imaginário. Ela parecia mostrar a ira divina com os pecados do mundo e, ao mesmo tempo, a chegada tempestuosa do Anticristo. O historiador Jean Delumeau, que dedicou boa parte de sua carreira a escrever  uma “história do medo”, argumenta que a peste é, por vezes, vista “como um dos cavaleiros do Apocalipse, como um novo ‘dilúvio’, como um ‘inimigo formidável'”.


Representação dos Cavaleiros do Apocalipse (peste, fome, guerra e morte) que são associados as crises agrária e demográfica, bem como guerras e revoltas no século XIV.


Reconhecida pelos historiadores como “fato estabelecido e inconteste”, a crise que nos séculos XIV e XV se abateu sobre a Europa “representa a substituição de uma estrutura, que não mais consegue se reproduzir como antes, por outra”. Dito de outra forma, a crise, na perspectiva aqui adotada, indica uma passagem: a do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista.


Referências Bibliográficas:


ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Brasiliense, 1987.


DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente: 1300-1800. Uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.


DUBY, G. Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos. Tradução de Eugênio Michel da Silva, Maria Regina Lucena Borges-Osório. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1998, p. 20.


LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2005.


PEREIRA, Nilton Mullet. A ideia de “fim do mundo”: paralelos entre os medos do mundo medieval e o medo do novo coronavírus (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/fim-do-mundo-dos-medos-medievais-ao-novo-coronavirus/‎.Publicado em: 4 mai. 2020. ISSN: 2674-5917. Acesso: [12/9/2024].


Por Sérgio Amaral, historiador e host do Podcast História e Sociedade.


Quer saber mais sobre a Independência da América Espanhola? Então não perca o episódio número 51 do Podcast História e Sociedade sobre esse tema. Para escutar, dê o play no tocador abaixo!



Para saber mais sobre histórias como esta, não deixe de seguir o Podcast História e Sociedade, através de sua plataforma de podcast preferida ou pelo nosso site www.historiaesociedade.com.br, na seção Ouvir os Episódios.



Comments


Post: Blog2_Post
bottom of page